Por uma escola republicana

Artigo

12.08.2020

A dissociação entre o pensamento e a implementação de políticas econômicas e o pensamento e a implementação de políticas educacionais é um aspecto da história social brasileira que, acredito, não tem sido suficientemente destacado. O curioso é que há certo paralelismo em ambos os campos, no Brasil e, pelo menos, no chamado mundo ocidental. Para não sermos exaustivos, podemos demarcar a década de 1930 como um período de renovação e de surgimento dos grandes intérpretes do Brasil, todos preocupados com a viabilidade da civilização brasileira, a procura das características que teriam impedido o Brasil a seguir uma trajetória de implantação e o desenvolvimento de sociedades com as características da Europa, a exemplo do ocorrido nos Estados Unidos e em outras ex-colônias britânicas.

Podemos dizer que, inspirados nos temas propostos pelos grandes pensadores brasileiros, gerações de economistas aderiram a um programa de pesquisa e de formulação de instrumentos para acelerar o desenvolvimento econômico. Um célebre exemplo é a consolidação entre nós do chamado pensamento Cepalino ou Estruturalista, que pautou até a postura dos críticos liberais, responsáveis, quando ocuparam cargos relevantes na Administração Pública, por importantes desenvolvimentos institucionais que os tornaram mais desenvolvimentistas do que ortodoxos.

Entre os educadores, a geração dos seus pioneiros trouxe a consolidação de uma percepção de nosso atraso educacional, da urgência e imensidão do desafio de ofertar escola pública para uma população em acelerado processo de crescimento e urbanização. Em comum tinham a crença no papel central de uma escola pública laica, provedora não apenas de uma cultura ornamental, mas também de uma educação capaz de alavancar a cidadania, disponibilizando instrumentos para o despertar do talento inato nas camadas sociais excluídas do progresso econômico. Os requisitos para essa escola moderna eram gigantescos para os padrões vigentes, isto é, ir além da cultura livresca, construir campos de experimentação, formar em larga escala professores, construir prédios e comprar os equipamentos requeridos por essa escola – como no célebre exemplo da Escola Parque de Anísio Teixeira, situada no bairro da Liberdade, em Salvador – , fixar no orçamento público os recursos necessários e negociar com a Igreja Católica, então fortemente influente na área, a expansão dessa nova escola.

O resultado que se pode inferir de nossa trajetória histórica foi um adiamento, sempre para um futuro distante, da transformação da utopia educacional em realidade. Séculos de vigência de escolas pouco enraizadas e espraiadas na sociedade exigiam mais esforços; exigiam mais aliados na sociedade. Alguns esforços importantes do Governo Federal e de governos estaduais eram incapazes de mudar o quadro educacional com o grande crescimento demográfico a exigir novas escolas, novos professores. Por outro lado, o crescimento econômico brasileiro foi brilhante entre 1930 e 1980. As falhas no sistema educacional em atendimento e qualidade pareciam ser funcionais para o avanço da economia. Aparentemente, a tecnologia podia ser importada com as máquinas e seus manuais. O crescimento da oferta de cursos técnicos e superiores parecia ser adequado ao estonteante crescimento desses anos dourados. Se não conseguimos a universalização da escola pública libertadora, fizemos as homenagens aos pioneiros da educação, construímos salas de aula para atender à população que se urbanizava e até em algum momento nos preocupamos com a qualidade.

Essa preocupação com qualidade se transmutou em escola do exame de admissão. Por definição, escola para poucos, seletiva, orgulhosa de si, distante das necessidades dos desafortunados. Uma escola mínima, que transferia para as famílias, especialmente para as mães, os encargos do reforço escolar, do acompanhamento da aprendizagem, da complementação do processo educativo com cursos particulares de línguas estrangeiras, artes e esportes. O que fazer com os que não vinham de famílias capazes de suprir todas essas e outras necessidades? Nossas queridas e tradicionais escolas públicas respondiam sutilmente que esses talvez devessem entender que estavam no lugar errado; que deveria haver escolas de caridade, escolas de trabalho mais condizentes com a situação desses estudantes que ousaram desrespeitar o lugar com suas presenças. Cotidianamente se faziam cobranças, livros que deveriam ser adquiridos, uniformes que espelhassem um status, atividades extracurriculares que eram avaliadas como rendimento escolar. Nem todos capitularam as humilhações; nem todos deixaram de perceber a crueldade e, por vezes, tentaram mitigá-la.

O fato é que, até hoje, o Brasil está longe de construir um sistema educacional público que atenda às necessidades de uma educação integral; que não esteja lastreado mais na exclusão de potenciais concorrentes com menores condições socioeconômicas do que na valorização e reconhecimento dos talentos, na provisão de condições equitativas de partida para que o talento seja aferido e lapidado, no desenvolvimento dos valores da solidariedade, no sentimento de pertencimento a uma única humanidade.

Nossas Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral são um exemplo concreto de uma aproximação à utopia dos pioneiros da educação e são herdeiras de uma série de tentativas de superar a escola pública minimalista e excludente. Aproximação não é corporificação, é experimentação, sujeita a erros e acertos. Por outro lado, já temos, em Sergipe, uma trajetória de mais de uma década, com início titubeante, e aparentemente conformada em ser seletiva, o que foi, efetivamente, em sua primeira versão, selecionando “os melhores alunos”. Descartado o exame de admissão, sua pequena escala, apenas quatro escolas, não mudaria o panorama educacional. O curioso é que começamos praticamente no mesmo momento em que o Estado de Pernambuco iniciou sua trajetória exitosa de Ensino Médio em Tempo Integral, mas ainda estamos longe da escala que Pernambuco atingiu.

O Plano Nacional de Educação e o seu correlatoPlano Estadual de Educação são produtos de um ciclo de crescimento econômico, democratização e mudança social poucas vezes experimentados no Brasil. Ao que foi mencionado, adicionou-se uma crescente consciência quanto às insuficiências da escola pública brasileira, especialmente quanto à qualidade e à equidade, visto que a universalização já estava sendo paulatinamente atingida. A fixação de metas objetivas, mais do que discursos generosos, e o acúmulo da experiência de mecanismos amplos de financiamento da educação, a exemplo do FUNDEF e seu sucessor, o FUNDEB, demandavam programas e ações e a avaliação das iniciativas que haviam obtido êxito no país, sob a responsabilidade de estados e municípios e dos diversos programas do Governo Federal, no seu papel de supervisor e financiador complementar da educação pública.

Para o Ensino Médio, devemos destacar a meta de oferta desta etapa da educação básica em 50% das escolas, em regime de tempo integral, com abrangência de 25% da matrícula. Como dissemos, Sergipe teve, a exemplo de outros estados, experimentos que permaneceram na escala laboratorial, visto que se restringiu inicialmente a quatro unidades. Pernambuco, ao contrário, desenvolveu um esforço concentrado para levar ao limite a universalização e já superou de longe a meta de matrícula, fixada no Plano Nacional e, mais ainda, atinge todos os municípios do estado. Não por acaso foi a unidade da federação que mais avançou na qualidade do Ensino Médio, saindo de uma posição muito desfavorecida em relação aos demais estados.

Em Sergipe, a trajetória de expansão consistente de escolas e matrículas do Ensino Médio em Tempo Integral foi viabilizada pela adesão ao Programa de Fomento do Governo Federal. Em 2017, ano inicial de vigência do programa de fomento, a matrícula era de 2.838 alunos; em 2018, 7.403; em 2019, 10.013, e em 2020 atingimos 13.000. No ano de 2020 estamos agregando sete novas escolas ao programa e duas que já ofertavam o Ensino Médio em Tempo Integral passaram a ser beneficiadas pelo fomento.

O Programa de Fomento permite um investimento de longo prazo para qualificação dessas escolas. Há um compromisso do Governo Federal de transferir para a Secretaria de Educação anualmente o equivalente a R$2.000,00 por aluno matriculado, por um período de dez anos. Este mecanismo de financiamento tem permitido programas de melhorias na infraestrutura das escolas, de aquisição de equipamentos (desde fogões, armários, móveis, freezers, geladeiras, laboratórios, computadores), livros e também programas de formação continuada dos professores. Ressalte-se que tanto o per capta por aluno matriculado em tempo integral tem acréscimo de 30% no FUNDEB, quanto o per capta do Programa Nacional de Alimentação Escolar recebe acréscimo.

No ano de 2020 estaremos assistindo a momentos importantes na consolidação do Ensino Médio em Tempo Integral. Dezessete unidades já completaram o ciclo com a implantação do terceiro ano do Ensino Médio, vinte e quatro estão implantando o terceiro ano e, finalmente, sete novas unidades começaram a implantação paulatina, ofertando o primeiro ano do Ensino Médio. Destas, três que foram recentemente inauguradas, a partir da proposta de Ensino Técnico Profissionalizante, serão inseridas à modalidade Ensino Médio em Tempo Integral, com o objetivo de implantar o itinerário técnico profissionalizante previsto na reforma do Ensino Médio. Finalmente, duas unidades que já ofertavam o Ensino Médio em Tempo Integral, mas não recebiam recursos do programa federal, passaram a fazê-lo neste ano.

Nada melhor para comemorar o centésimo vigésimo aniversário de Anísio Teixeira do que demonstrar que o seu sonho de multiplicar a Escola Parque do Bairro da Liberdade, em Salvador, está se concretizando mais e mais, e relembrar suas palavras: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a escola pública.”

* Josué Modesto dos Passos Subrinho é secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura (Seduc/Sergipe) e foi reitor da Universidade Federal de Sergipe.