Opinião: O ano que não acabou

Sergipe

14.12.2020

*Josué Modesto dos Passos Subrinho

Tal qual 1968, retratado no livro de Zuenir Ventura, 2020 será muito provavelmente caracterizado como o ano que não acabou.

No cenário educacional, começando na escala global e chegando ao nosso pequeno Estado, Sergipe, podemos dizer que acontecimentos importantes, com repercussões que adentrarão o futuro, produzem a sensação de um ano inacabado. O fato mais marcante foi a irrupção da pandemia do novo coronavírus e suas consequências sobre os sistemas educacionais, com uma intensa aceleração do uso de tecnologia de comunicação para mediar os processos educativos. O segundo foi a aprovação da Emenda Constitucional 108/2020, que deu caráter permanente ao FUNDEB (Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação) e, finalmente, a divulgação dos resultados da avaliação nacional da educação básica expressa no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, IDEB, o qual foi utilizado para responsabilizar gestores públicos pelos resultados, exibido como êxito ou como justificativa para redirecionar as políticas educacionais.

Os impactos dos acontecimentos enfeixados nos três conjuntos – pandemia, novo FUNDEB e divulgação do IDEB – merecem considerações que, mesmo sintéticas, não cabem em um artigo. Dedicaremos um artigo a cada um dos temas centrais, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto; antes, pelo contrário, apenas de chamar a atenção do público. Começaremos pela questão da pandemia.

A pandemia provocada pelo novo coronavírus levou a um fechamento de escolas em escala global, à procura por adaptações com a utilização de tecnologias de comunicação que há anos vinham sendo utilizadas de forma suplementar e que foram colocadas no centro dos processos educacionais, e, finalmente, a uma aceleração das discussões sobre o papel da educação, especialmente da educação pública, no funcionamento das sociedades modernas.

O setor educacional foi, na maior parte do mundo, o alvo predileto para a redução da circulação de pessoas com vistas a diminuir e/ou controlar a proliferação do vírus. Certamente, o número imenso de pessoas envolvidas e a forte presença do Estado, como provedor direto ou como regulador de agentes privados, levariam inevitavelmente a uma paralisação no setor muito mais intensa e duradoura do que qualquer outro. A duração dos efeitos da pandemia fez com que diferenças em calendários escolares e estações do ano se tornassem secundárias. Em qualquer situação, um ano escolar foi fortemente prejudicado e, no momento, nada indica que em 2021 será possível termos um ano regular nem, simultaneamente, a recuperação do ano que não acabou.

A paralisação das atividades escolares presenciais exigiu a ativação em larga escala de soluções de educação a distância, ensino remoto, ensino mediado por tecnologias. Não importam o título e as controvérsias acadêmicas e legais que por anos têm povoado nosso cotidiano. O fato é que só tínhamos a opção de não fazer nada e esperar o retorno às condições adequadas para as atividades presenciais ou lançar mão de todo o acervo de experimentos já existentes e em processo de aperfeiçoamento, sem que se tivesse a ilusão ou pretensão de que poderíamos alcançar todos os estudantes com o mesmo grau de eficiência, e que todos eles pudessem usufruir os meios disponibilizados com o mesmo grau de aproveitamento.

Por diversas razões e sob diversos critérios, a China é um caso muito atípico de sucesso, até o momento, de controle da pandemia em seu território e de rápida adaptação do setor educacional às condições impostas pelo surto pandêmico. Segundo um relatório da UNESCO, as condições necessárias para o sucesso Chinês e que podem servir de guia para outros países que queiram repetir a experiência são as seguintes:

•         Infraestrutura de comunicação confiável. Mesmo países que têm uma boa condição de infraestrutura não suportaram a demanda adicional provocada pela educação online. Evidentemente onde a infraestrutura está longe do ideal o problema se agrava.
•         Recursos digitais de aprendizagem adequados. Em alguns países até existem recursos digitais para aprendizagem, mas não passaram pelo crivo dos professores ou pesquisadores para verificar se o conteúdo não colide com os objetivos educacionais fixados nacional e/ou localmente.
•         Ferramentas amigáveis de aprendizagem. A simples veiculação da aula gravada por um professor para seus alunos não é uma boa ferramenta de aprendizagem. Complementar ou substituir esse procedimento por ferramentas mais compatíveis com interesses dos jovens e crianças é um desafio que exige a produção prévia de acervos testados e aprovados pelos usuários.
•         Métodos eficazes de aprendizagem. É importante ter disponíveis métodos de aprendizagem que já tenham demonstrado eficácia. É muito difícil improvisar.
•         Métodos de ensino e aprendizagem. Não apenas os estudantes precisam ter acesso a um produto educacional; os professores precisam ser capacitados para ensinar com os novos métodos. Em alguns países boa parte dos professores nunca tiveram uma experiência de utilização de ferramentas desenhadas para o ensino remoto.
•         Serviços de apoio eficazes para professores e alunos. As panes e mal funcionamento nos serviços tecnológicos são inevitáveis. Dispor de bons serviços de apoio capazes de suprir em tempo hábil tais falhas é imprescindível.
•         Cooperação estreita entre governo, empresas e escolas. A gama de serviços e recursos a serem mobilizados ultrapassa os orçamentos regulares das escolas ou redes escolares. A disposição do governo e empresas para colaborar com recursos financeiros, materiais e conhecimentos tecnológicos é fundamental para viabilizar tal esforço em curto prazo a fim de não inviabilizar a continuidade dos processos educacionais.

O desafio para a Secretaria de Educação de Sergipe e para as dos demais estados foi tentar prover ensino remoto em tempo hábil, sem que as condições ideais acima listadas estivessem disponíveis e ao mesmo tempo, sem o apoio do Governo Federal, que tem grande capacidade de direcionamento dos esforços das empresas concessionárias de serviços públicos de telecomunicações, por exemplo. O apoio do Governo Federal foi muito importante na instituição de um mecanismo emergencial de renda mínima para as famílias e no suporte financeiro aos Estados e Municípios, mas para a Educação, especificamente, ficou uma olímpica inação.

Já foi dito que a necessidade é a fonte das inovações. De fato, descobrimos que muitas de nossas reuniões podiam ser feitas com a infraestrutura tecnológica já disponível. Não necessitamos de caros e complexos centros de videoconferências. Aplicativos que podem ser baixados em celulares ou computadores supriram nossas necessidades. As pastas de processos administrativos podem ser digitalizadas e podem começar em meio digital. Os diários de classe foram substituídos por diários eletrônicos. Investimentos significativos foram feitos com recursos próprios em segurança e ampliação da capacidade de nossa rede de dados, na melhor conexão de nossas escolas e na aquisição de computadores que foram ou estão sendo distribuídos para as escolas de nossa rede. Podemos utilizar meios antigos e eficientes, como emissoras de rádio e de televisão, ou meios mais modernos, a exemplo de aplicativos e jogos educacionais. Nossos professores, que já demonstraram aqui e em outros lugares seus talentos na conversão de conteúdos didáticos para a linguagem dos jovens, têm novos campos para desenvolvimento. Enfim, 2020 é o ano da descoberta da inevitabilidade da aproximação das “placas tectônicas” que permaneceram tão distantes. Em uma dessas “placas” está ancorada a cultura analógica da maioria dos professores; em outra, a cultura digital da maioria dos estudantes. Não são forças subterrâneas que fizeram essa aproximação, mas sim decisões conscientes, que envolvem mudanças normativas, mudanças de hábitos e investimentos que colocam tais placas em movimento. Há sempre resistências, por vezes, aparentemente incompreensíveis por seu barulho e fúria.

Por meses fomos pressionados a não implementar essas ações de ensino remoto, sob o pretexto de que se não chegasse a todos os estudantes, seria ilegítimo. Fomos instados a não usar a criatividade e o compromisso de nossas professoras e nossos professores que se dispunham a entregar material impresso com orientações para os estudantes e famílias, sob o argumento de que estávamos levando ao aumento da circulação do vírus.

Orgulhamo-nos de não termos capitulado à inércia. Contamos com o apoio de um número significativo de parceiros institucionais, das famílias, dos nossos técnicos e, principalmente, do compromisso com a educação pública de professoras e professores sergipanos. Não tenhamos ilusões, entretanto. O jornal Folha de São Paulo, do dia 29 de novembro, publicou matéria em que as famílias, majoritariamente, acreditam que seus filhos não tiveram o aproveitamento esperado no ano em que foram submetidos ao ensino remoto. Acreditam na necessidade do ensino presencial para potencializar o aprendizado.

Em Sergipe não temos levantamento semelhante. Não nos surpreenderia se o resultado fosse assemelhado. No momento, após a autorização do Comitê Científico que acompanha no Estado a evolução da pandemia, estamos começando um processo gradativo, com protocolos monitorados pelas autoridades de saúde e por comitês locais de adequação das escolas às citadas recomendações, de retomada das atividades presenciais em escolas privadas e públicas, com ênfase no terceiro ano do ensino médio, cujos estudantes deverão fazer o Exame Nacional do Ensino Médio para acesso ao ensino superior.

Por esses dias, as virtudes do ensino remoto foram reconhecidas, sendo, inclusive, declaradas superiores ao ensino presencial. É um bom sinal de adaptação às condições que são impostas a todos. Estamos planejando um ano de 2021 com atividades presenciais, se possível, e com atividades remotas, ou seja, o ensino híbrido para tentar recuperar a defasagem de aprendizagem que as famílias já detectaram e que os exames e avaliações diagnósticas mensurarão. Temos uma longa jornada para manutenção da rota de melhoria da qualidade do ensino público. Muito ainda há para ser feito. Precisamos de todos, contamos com todos.
 
 [*] É secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura - Seduc – e foi reitor da Universidade Federal de Sergipe.