Artigo de opinião
14.07.2020O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação, estabelecido no Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional nº 53 de 2006, é atualmente a principal fonte de financiamento da Educação Básica no Brasil. Ele sucedeu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério, estabelecido pela Emenda Constitucional nº 14 de 1996, cuja principal diferença com o atual fundo era ter uma área de aplicação dos recursos mais restrita, como se anuncia em seu nome, no ensino fundamental, enquanto o seu sucessor abrange, além do ensino fundamental, a educação infantil e, também, o ensino médio, tendo em vista a ampliação da idade de escolarização obrigatória.
Como a base legal do FUNDEB é um artigo das disposições constitucionais transitórias, com vencimento estabelecido para 2020, faz-se urgente o exame dos ganhos e custos vinculados ao citado fundo e a avaliação de sua prorrogação e/ou perpetuação, bem como uma síntese da proposta que está tramitando no Congresso Nacional acerca do assunto.
O estabelecimento desses dois fundos de financiamento da educação está incluído em um movimento de ampliação de acesso a direitos sociais, cujo ápice normativo foi a Constituição Federal de 1988. A forte crise econômica pela qual o Brasil passou, entre o final da década de 1980 e o início da de 1990, com surtos inflacionários e dificuldades nas contas externas, colocou em segundo plano a regulamentação da viabilização dos direitos a serem garantidos pelo Estado e do seu adequado financiamento. Com a superação da crise inflacionária após o Plano Real, em 1994, iniciaram-se a regulamentação de alguns dos direitos sociais estabelecidos na nova Constituição e a discussão, até hoje não concluída, sobre os limites de ação do Estado, os seus meios e formas de atuação.
Nas discussões sobre financiamento da educação básica no Brasil, alguns atores, por vezes, passam a impressão de que o FUNDEB é constituído de recursos federais com regras rígidas estabelecidas para os gastos. Estes aspectos são parcialmente verdadeiros, mas não destacam o principal: o FUNDEB é constituído de uma parte dos recursos vinculados aos gastos com educação, tendo um caráter de redistribuição no âmbito de cada unidade da federação entre o estado e os seus municípios, conforme o número de estudantes matriculados nas diversas etapas e modalidades da educação básica. A União contribui com recursos na proporção de 10% do total dos recursos aportados pelos estados e municípios, contemplando apenas os fundos estaduais com menores recursos per capta, sendo beneficiados sete estados da região Nordeste e dois da região Norte. Sergipe e Rio Grande do Norte são os estados nordestinos que não recebem aportes do governo federal.
Na realidade é um exemplo muito bem sucedido de redistribuição de recursos entre entes federados, tendo em vista a quantidade de serviços que cada um presta. Já era consolidada no Brasil a tradição de estipular vinculações mínimas de gastos em educação pelos entes subnacionais, mas vamos supor que um município que passou por um surto de crescimento econômico importante tivesse poucas escolas, sendo a maioria delas estaduais ou privadas. Como ele tinha que comprovar despesas com educação, num mínimo fixado, tendia a classificar como tais despesas indiretamente ligadas à educação (um bom exemplo é a pavimentação da rua onde se localiza a escola) ou uma miríade de gastos assistenciais. A melhor definição de gastos públicos educacionais, estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional permitiu a implantação do FUNDEF, com sua lógica de distribuição de recursos de um Fundo Estadual, para onde convergiam automaticamente e em proporções fixadas em lei, uma cesta de tributos estaduais e transferências federais ao estado e seus municípios, a partir do qual os entes receberiam proporções fixadas pela matrícula de estudantes em suas escolas aferida no ano anterior pelo Censo da Educação Básica. Também é parte dessa evolução legislativa a fixação de um piso nacional salarial de docentes da educação básica, da exigência de curso superior com habilitação em licenciatura para exercício do cargo de professor e a estruturação de planos de carreira do magistério.
Vamos utilizar dados referentes ao Estado de Sergipe, em 2019, para exemplificar o funcionamento do FUNDEB.
Os cálculos do FUNDEB 2019 começaram com a aprovação pelo MEC dos fatores de ponderação para o exercício que atribuem pesos diferentes para matrículas em etapas e modalidades da educação básica, variando de peso 1,0 para os anos iniciais do ensino fundamental urbano a peso 1,30 para ensino médio em tempo integral. Após a consolidação dos dados da matrícula registrada no Censo Educacional 2018, o MEC publica portaria onde estão definidos, entre outros: a) valor anual por aluno, estimado para cada estado e para o Distrito Federal; no cálculo se leva em conta a receita de impostos de cada Estado/Município que integrará o Fundo e que será repartida tendo em vista a matrícula e suas ponderações em cada rede; b) valor anual mínimo nacional por aluno, estimado para o ano de 2019 em R$ 3.238,52; este valor também será usado para calcular o Piso Nacional do Magistério; c) Percentual de distribuição para a rede estadual e para cada rede municipal.
A participação da rede estadual ficou estabelecida em 0,36965564413, com uma previsão de arrecadação de R$ 657.511.700,47. No balanço orçamentário de 2019, pode-se constatar que o Estado de Sergipe contribuiu com R$ 1.353.105.344,39 para o FUNDEB, ao qual foram adicionadas as contribuições de 20% das cotas municipais do ICMS e dastransferências do Governo Federal ao Fundo de Participação dos Municípios. A Secretaria Estadual de Educação recebeu nesse mesmo ano R$ 683.473.825,28 para custear parte de suas despesas. A diferença entre a contribuição do Estado ao FUNDEB e as retiradas pela Seduc são registradas contabilmente como perdas, mas na realidade são contribuições do Estado para a efetivação do direito à educação nas redes municipais.
O FUNDEB é parte importante do financiamento da educação básica, mas não é sua totalidade. Os estados e municípios devem aplicar 25% de suas receitas correntes líquidas em educação. Os gastos com educação não cobertos pelo FUNDEB são registrados como despesas de manutenção e desenvolvimento da educação. Se um município ou estado tem atividades econômicas muito intensas, aumenta o montante de recursos não vinculados ao fundo que devem ser gastos em educação, e este é um ponto importante que é objeto do projeto de emenda constitucional em discussão na Câmara dos Deputados para aperfeiçoamento do FUNDEB. Assim, por exemplo, enquanto a despesa liquidada pela Secretaria Estadual de Educação, em 2018, quando dividida por aluno matriculado naquele ano levou a um per capta de R$ 7.232,09, no município de Ilha das Flores, no mesmo ano, o per capta foi de R$ 3.352,55, e em Aracaju, nas mesmas circunstâncias, o per capta foi de R$ 11.221,08. Apesar das diferenças de valores efetivamente praticados, a diferença seria muito maior, prejudicando sensivelmente os estudantes dos municípios mais pobres se o FUNDEB não existisse.
Está prevista para o dia 14 de julho a leitura do parecer no plenário da Câmara dos Deputados acerca da Proposta de Emenda Constitucional 015/2015, de autoria da deputada Raquel Muniz e relatada pela deputada Professora Dorinha. O relatório prévio da deputada Dorinha acolheu sugestões de diversas entidades ligadas à educação e incorporou sugestões de deputados e senadores colhidas em audiências públicas e em emendas ou manifestações de diversas origens. Depois de anos de tramitação a proposta parece ter alcançado um razoável consenso político para viabilizar sua aprovação. Os pontos principais do relatório são:
a) Estabelece o caráter permanente do FUNDEB e prevê a revisão de critérios de distribuição num prazo de seis anos.
b) Eleva a contribuição da União ao FUNDEB dos atuais 10% do montante total para 20% escalonado em seis anos, começando com um percentual de 12,5% no primeiro ano de vigência do novo fundo.
c) Estipula o conceito de despesa de Aluno Ano Total para redes estaduais e municipais, abrangendo todas as despesas realizadas com educação por cada ente, devendo o aporte do Governo Federal contemplar as redes com menores valores totais. A mudança deve ser gradual, tendo em vista a contribuição dos recursos adicionais. As redes estaduais beneficiadas e seus municípios beneficiados com o nível atual de contribuição federal não sofrerão reduções.
d) Estipula mecanismo de premiação com recursos adicionais das redes com melhorias na gestão, no desempenho aferido nas avalições nacionais e na redução das desigualdades.
e) Fixa a obrigação de os estados alterarem suas leis de distribuição da quota municipal do ICMS, tendo em vista a melhoria dos indicadores educacionais.
Como se pode ver, além de garantir um mecanismo de longo prazo para o financiamento da educação básica, a proposta traz melhorias significativas no sentido de tornar o FUNDEB mais equitativo, aportando recursos federais, por exemplo, para municípios sergipanos com baixos investimentos em educação decorrentes de sua baixa performance econômica. O atual FUNDEB não permite tal aporte, porque a média estadual está acima do per capta nacional para recebimento de recursos federais. A proposta também demanda uma maior contribuição do Governo Federal para o financiamento da educação básica, num montante que ainda é considerado, pelos especialistas, insuficiente para prover condições financeiras para uma educação de qualidade, mas é certamente um avanço importante. Traz ainda dois mecanismos de incentivo à perseguição dos melhores resultados educacionais, por meio da distribuição de recursos federais adicionais para as redes com melhorias na gestão, melhores avaliações em certames nacionais e redução das desigualdades e, finalmente, a fixação por parte dos estados de critérios de distribuição da quota municipal do ICMS, tendo como um dos critérios o desempenho das redes municipais em avaliações oficiais.
Por todas essas razões esperamos a mais célere possível aprovação pelo Congresso Nacional da Proposta de Emenda Constitucional 15/2015 e sua tempestiva regulamentação, permitindo um ano de 2021 menos traumático para toda a educação básica brasileira, visto que ela já está passando por condições inéditas de estresse.
[*] É Presidente do Conselho Fiscal do Consed e Coordenador da Frente do Novo Fundeb do Consed . É secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura (Seduc/SE) e foi reitor da Universidade Federal de Sergipe.