Artigo
28.05.2020Está se tornando um lugar comum a
afirmação de que não seremos os mesmos após a experiência desta pandemia. Mas
quando alguns se dispõem a mensurar a mudança, inúmeros problemas surgem, a
começar pela incerteza quanto à duração, persistência e eventual recorrência
deste agora vírus. Por outro lado, momentos de grave crise geram profecias de
uma mudança essencial da humanidade, como por exemplo, durante a Grande Guerra,
depois denominada de I Guerra Mundial, que, segundo os que a viveram, fora
feita para acabar com todas as guerras.
Não demoraria muito para um cabal desmentido de tão bela esperança.
Nosso propósito é muito menos ambicioso. Queremos apenas especular sobre os impactos da pandemia na rede estadual de educação básica do Estado de Sergipe. A nossa hipótese é que grandes crises como a atual têm um efeito semelhante ao baixar das marés, explicitando problemas que ficavam submersos entre nossas inúmeras preocupações.
Dois problemas relacionados à interrupção das atividades presenciais das escolas têm tomado a atenção de gestores educacionais, dos órgãos de controle, das lideranças políticas, da imprensa e da assim chamada opinião pública: a interrupção da alimentação escolar e o agravamento das oportunidades de acesso à educação com a adoção em larga escala do ensino remoto.
Inicialmente abordaremos a questão do agravamento das oportunidades de acesso à educação nas condições geradas pela pandemia.
A relativamente recente universalização de acesso à parte das etapas da educação básica no Brasil é uma vitória importante. Praticamente todas as nossas crianças têm acesso ao ensino fundamental, mas há ainda falta de oferta de vagas na educação infantil, especialmente em creches. E quanto ao ensino médio, há uma parcela significativa de jovens que nunca frequentaram os anos dessa etapa e outra que a abandona antes de concluí-la.
As avaliações nacionais para aferição do grau de aprendizagem têm demonstrado níveis precários, tanto quando comparados com padrões internacionais quanto quando comparados com expectativas nacionais de evolução da aprendizagem em suas diversas edições. Um aspecto que tem sido mensurado é o impacto do nível socioeconômico das famílias dos estudantes sobre o aprendizado destes.
Em Sergipe, no ano de 2017, por exemplo, o grau de proficiência média em matemática dos alunos do nono ano do ensino fundamental variou de 270 a 220, quando os estudantes são ordenados segundo o critério de menor carência socioeconômica até os graus mais elevados de carência. Ou seja, quanto maior a carência socioeconômica da família menor a aprendizagem do estudante.
Em março deste ano as atividades escolares presenciais foram suspensas tendo em vista a necessidade de evitar a propagação da pandemia da Covid-19. Como manter a aprendizagem de nossos estudantes nessa situação? Seria possível converter para formatos remotos todas as atividades educacionais ou as principais delas?
Podemos colher de experimento internacional duas experiências. Uma delas são as dificuldades no contorno das diferenças socioeconômicas na conversão de atividades presenciais em remotas. Este foi o caso da prefeitura de Nova Iorque que, ao recomendar a oferta de conteúdos curriculares on-line, descobriu que boa parte dos estudantes não tinha acesso à banda larga de internet que viabilizasse o uso do material disponível. Adicionalmente, nem todos os professores se sentiam confortáveis com esse novo formato do processo educacional.
O exemplo da China tem sido relatado como o mais bem-sucedido, tendo como o objetivo claro de “aulas interrompidas, aprendizagem ininterrupta” baseado em educação on-line. Preliminarmente devemos lembrar que a China tem características de difícil reprodução em outros países. Trata-se de um Estado centralizado e muito forte com baixas restrições na mobilização de recursos humanos e financeiros e com infraestrutura moderna recém-construída, por exemplo, com uma ampla disponibilidade de banda 5G de comunicação, ainda indisponível em muitos lugares, inclusive no Brasil. Por outro lado, acumulou experiências no enfrentamento de surtos epidêmicos em períodos recentes.
Segundo um relatório da UNESCO, as condições necessárias para o sucesso chinês, as quais podem servir de guia para outros países que queiram repetir a experiência, são as seguintes:
1. Infraestrutura de comunicação confiável. Mesmo os países que têm uma boa condição de infraestrutura não suportaram a demanda adicional provocada pela educação on-line. Evidentemente, onde a infraestrutura está longe do ideal o problema se agrava.
2. Recursos digitais de aprendizagem adequados. Em alguns países até existem recursos digitais para aprendizagem, mas não passaram pelo crivo dos professores ou pesquisadores para verificarem se o conteúdo não colide com os objetivos educacionais fixados em nível nacional e/ou localmente.
3. Ferramentas amigáveis de aprendizagem. A simples veiculação da aula gravada por um professor para seus alunos não é uma boa ferramenta de aprendizagem. Complementar ou substituir esse procedimento por ferramentas mais compatíveis com interesses dos jovens e crianças é um desafio que exige a produção prévia de acervos testados e aprovados pelos usuários.
4. Métodos eficazes de aprendizagem. É importante ter disponíveis métodos de aprendizagem que já tenham demonstrado eficácia. É muito difícil improvisar.
5. Métodos de ensino e aprendizagem. Não apenas os estudantes precisam ter acesso a um produto educacional; os professores precisam ser capacitados para ensinar com os novos métodos. Em alguns países, boa parte dos professores nunca tiveram uma experiência de utilização de ferramentas desenhadas para o ensino remoto.
6. Serviços de apoio eficazes para professores e alunos. As panes e mal funcionamento nos serviços tecnológicos são inevitáveis. Ter a disponibilidade de bons serviços de apoio capazes de suprir em tempo hábil tais falhas é imprescindível.
7. Cooperação estreita entre governo, empresas e escolas. A gama de serviços e recursos a serem mobilizados ultrapassa os orçamentos regulares das escolas ou redes escolares. A disposição do governo e empresas para colaborar com recursos financeiros, materiais e conhecimentos tecnológicos é fundamental para viabilizar tal esforço em curto prazo a fim de não inviabilizar a continuidade dos processos educacionais.
O Brasil está muito distante de oferecer condições próximas às da China. E Sergipe, em especial, apresenta alguns aspectos mais críticos do que a média nacional. Assim sendo, enquanto no Brasil como um todo 47% dos domicílios têm acesso à internet banda larga, em Sergipe o índice chega a 34,8%, que é o segundo melhor entre os estados nordestinos. No estado com pior cobertura, tal índice chega a apenas 16,5%. O local de moradia da família também determina as possibilidades de acesso à internet. No Brasil como um todo, na zona rural, por exemplo, 41% dos moradores não têm qualquer acesso. Porém, mais importante é o nível de renda. Enquanto na chamada classe A 92% das famílias têm acesso garantido, nas classes D e E apenas 59% tem acesso garantido.
Portanto, todo o esforço de disponibilizar recursos digitais veiculados para nossos estudantes deve levar em consideração as dificuldades de acesso ao material disponibilizado. Cada escola deverá avaliar a real capacidade de seus estudantes acessarem o material a ser utilizado em seus estudos diários. Uma avaliação diagnóstica para mensurar o grau de aprendizagem obtida por cada estudante durante o período de afastamento social deverá ser realizada no retorno às atividades presenciais. Posteriormente, assim que as condições sanitárias permitirem, a combinação de atividades presenciais com atividades remotas de diversas modalidades, mediadas por tecnologia – fornecendo material impresso e/ou programando atividades estruturadas pelos professores para intensificar a aprendizagem – deverá ser desenhada para cada situação concreta.
Novamente, a pandemia expôs o imenso abismo que há nos processos educacionais brasileiros quando comparados com a nossa experiência de uso da tecnologia como suplementar ou substituta, em condições especais, das atividades educacionais tradicionais, bem como a complexidade do Brasil, que tem disparidades de acesso aos processos educacionais conforme a região e a classe social das famílias dos estudantes. Reiterar o papel central da escola, especialmente da escola pública, como espaço de construção de cidadania e de viabilização de projetos de desenvolvimento dos indivíduos e da sociedade parece ter sido um dos grandes ganhos desta crise.
De forma semelhante, assegurar uma alimentação estudantil de qualidade a todos os frequentadores da escola pública mostrou-se fundamental à sobrevivência e melhoria das condições socioeconômicas de milhões de famílias brasileiras, exigindo uma maior atenção, visto que os recursos atualmente disponibilizados estão longe de propiciar as condições adequadas ao melhor desenvolvimento da educação.
*Secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura e ex-reitor da Universidade Federal de Sergipe