Da batina às cartas: ex-padre se torna professor e cativa alunos com criação de jogo para ensinar filosofia

São Paulo

15.10.2025

As discussões filosóficas nas aulas do Ensino Médio da Escola Estadual Professor Jefferson Soares de Souza, localizada na cidade de Jumirim — a 152 quilômetros da capital — foram substituídas por batalhas de RPG pelo professor Ricardo Cirino Vaz, de 44 anos de idade. Ex-padre, ele se afastou da igreja, se formou em filosofia, história e sociologia e decidiu se tornar professor da rede pública de ensino há cinco anos.

Na sua atuação como professor, ele entendeu que os alunos chegam ao Ensino Médio sem qualquer conhecimento sobre a filosofia e decidiu criar um RPG, chamado por ele de Mentis, um jogo com 100 cartas e tabuleiros, e colocar alunos e filósofos para batalharem em busca de conhecimento. Assim, ele tem transformado o modo como os estudantes encaram a disciplina, uma das mais temidas da última etapa do Ensino Médio.

“A filosofia é vista como muito difícil e complexa. É uma matéria com 90% de literatura, e nem todos se sentem interessados pelo aprendizado”, comenta. A partir dessa constatação, Ricardo decidiu que era hora de reinventar sua sala de aula. “Eu quis dar aos estudantes a possibilidade de botar a ‘mão na massa’, criar um contato com esse material, para ter uma aula diversificada”.

A filosofia em forma de jogo

Inspirado em jogos de estratégia como Magic e Yu-Gi-Oh!, o professor transportou para o ensino o espírito competitivo dos debates filosóficos. “No seminário, a gente encarava os debates como uma batalha filosófica, desde que fosse respeitosa — um enfrentamento positivo. Essa experiência foi importante para o professor que sou hoje”, conta.

O resultado foi esse RPG filosófico com 100 cartas e três ciclos de tabuleiro, finalizado no início deste ano. Cada carta representa filósofos, conceitos e áreas da filosofia, e as “batalhas” são travadas com argumentos e conhecimento, não com força ou sorte, como acontece nos jogos que inspiraram o professor. “No lugar de batalhas, o jogo é feito de argumentações e conhecimentos. A ideia é ajudar os alunos a gostarem da filosofia, memorizarem e conhecerem os filósofos”.

Durante as aulas, o próprio Ricardo utiliza as cartas como material de apoio. “Os alunos entram no Ensino Médio sem saber nada, achando muito difícil. Pela jogabilidade, eles acabam motivados. Eles vão aprender a falar nomes como Aristóteles, Simone de Beauvoir e Kant, que eu percebia que eles tinham dificuldade de pronunciar, a estruturar o pensamento, a desenvolver a lógica da argumentação e isso serve para a vida e para os estudos em geral”.

Como funciona o jogo

O jogo Mentis, desenvolvido ao longo de seis meses, funciona como uma batalha de cartas em que os filósofos são os protagonistas. As cartas são divididas em cinco tipos — filósofos, livros, citações, símbolos e eventos — e permitem que os jogadores construam suas “bibliotecas filosóficas”. Cada jogador precisa ter ao menos três filósofos em jogo para iniciar os debates, que podem ocorrer em três campos: conhecimento, argumentação ou influência histórica. O exemplo dado pelo professor é o de Kant, que possui dez pontos de conhecimento e pode somar bônus com cartas adicionais, como citações e livros, para vencer o adversário em um debate de ideias.

O sistema lembra o clássico “super trunfo”, mas com uma dimensão conceitual: vence o jogador que mantiver mais filósofos em sua biblioteca. As partidas podem envolver de duas a seis pessoas e incentivam a leitura, a estratégia e o pensamento crítico. 

Resultados e reconhecimento

O impacto da proposta é visível nas avaliações e no engajamento, entende o professor. Ricardo afirma perceber melhoras nas notas bimestrais, especialmente entre os estudantes da 3ª série que participam de debates e cafés filosóficos. “Há um crescimento significativo, principalmente entre os alunos do itinerário de Humanas”.

Mais do que aprender filosofia, muitos acabam descobrindo novos caminhos acadêmicos. “Vários alunos querem ir para a faculdade na área de humanas, mesmo que não seja para filosofia, mas contam que minhas orientações são essenciais. Qualquer pontinha de luz que a gente encontra dá uma alegria imensa. Para fazer uma redação no  vestibular, por exemplo, a filosofia também dá argumentos para esses alunos”.

A trajetória do altar à escola

Antes de chegar às salas de aula, Ricardo viveu quase uma década no sacerdócio. Foi padre em Sorocaba entre 2009 e 2018, depois de se formar em teologia — com reconhecimento pontifício de Roma — e filosofia pela Uniso (Universidade de Sorocaba).

A decisão de deixar a batina veio após um período de reflexão. “Chegou um momento da minha vida em que eu tive que fazer uma autorreflexão sincera sobre a minha felicidade. Dentro de várias reflexões, havia um desejo de ter família que nunca tinha morrido dentro de mim”, lembra.

Hoje, ele está noivo de uma professora da educação infantil que vive em São Paulo, com quem começou a namorar em 2023. “Foi uma saída muito tranquila da igreja. Fui um padre feliz e estou feliz com a minha história — e isso inclui ser professor da rede”.

Da igreja à escola, a vocação continua a mesma: inspirar. “É gratificante ver quando eles vêm atrás de mim durante o intervalo pedindo o jogo para brincarem. Isso é ainda mais visível porque eles estão sem o celular”.

Agora, o professor trabalha em um livro que deve ampliar a experiência pedagógica criada a partir do jogo e servirá como um manual ampliado. “A gente não pode perder a paixão pelo ensino. É preciso se renovar. Estou muito feliz na minha caminhada”, finaliza.