Paraná
13.03.2023Imagine um plástico à base de microalgas que se decomponha em um único mês ou uma película que faça uma maçã durar mais de cem dias. Projetos como esses poderiam ser feitos por profissionais com um currículo extenso, mas são trabalhos desenvolvidos por alunos dos ensinos fundamental e médio, participantes do Clube de Ciências do Colégio Estadual Jardim Porto Alegre, em Toledo, na região oeste do estado. O grupo foi criado em 2014 pela própria escola com o objetivo de aumentar o acesso dos alunos a atividades práticas.
Dionéia Schauren, hoje aos 36 anos, era bibliotecária na época e caiu de paraquedas no projeto. Por ter formação em Ciências Biológicas, ficou com a responsabilidade do clube, o que acabou transformando a sua vida, a dos estudantes e da educação pública paranaense. O clube e os jovens cientistas do Paraná são representantes da série de reportagens "Paraná, o Brasil que dá certo".
Naquela ocasião, há mais de dez anos, logo após a sua entrada no projeto, uma das alunas a questionou: “como eu faço pra ser cientista igual a você?”. A pergunta pegou Dionéia de surpresa. Ela não respondeu de imediato, mas analisou o cenário com calma e deu um diagnóstico: “Acho que estávamos ensinando errado. Os alunos achavam que chegariam com um roteiro pronto, fariam um experimento que explode, como nos seriados de cultura popular, e seriam cientistas, mas não é bem assim. Precisávamos criar um método”.
Foi então que ela e a escola decidiram transformar em realidade o sonho dos alunos de se tornarem cientistas e o Clube de Ciências ganhou uma metodologia robusta para que os projetos, de fato, alcançassem potencial científico e explodissem – no sentido de alcançar o mundo. Os alunos começaram a ter aulas práticas no contraturno de física, química, biologia e estatística, estudam em conjunto, além de aprenderem o que é método científico, regras de Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), falar em público, entre tantas outras iniciativas.
Os alunos também passaram a desenvolver projetos de iniciação, nos moldes do ensino superior, antecipando uma formação mais completa ainda na adolescência. Iniciação científica é uma modalidade de pesquisa acadêmica na qual os estudantes aprofundam seus estudos em torno de um determinado tema, relacionado à sua área de interesse.
“Começamos com sete projetos naquele primeiro ano. Se ficassem bons, tentaríamos publicar. Mas era quase impossível encontrar uma universidade que aceitasse trabalhos de alunos dos ensinos fundamental e médio. Até que nós conseguimos, o que mostrou que estávamos no caminho certo de transformar a educação em algo transformador”, afirma Dionéia.
CHOQUE DE REALIDADE – Os primeiros anos do novo Clube de Ciências foram de estruturação do projeto. A primeira feira de que eles participaram fora do estado foi a Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia (Mostratec), realizada pela Fundação Liberato, no Rio Grande do Sul, em 2017. O evento recebe trabalhos do mundo todo. A professora achou a ideia um pouco pretensiosa demais, até porque só trabalhava com eles há três anos, mas decidiu encarar. O Clube de Ciências do colégio teve oito trabalhos selecionados.
“Imaginei uma banquetinha, um lugar para pendurar um banner, eles apresentando os trabalhos e depois disso retornaríamos para casa, como nos eventos municipais ou estaduais. Também era novo para mim, eu estava aprendendo. Quando chegamos lá, descobrimos que era a maior feira da América Latina, com 700 trabalhos, 24 países participando, todos de terno e gravata. E os meus alunos de uniforme, tênis e calça jeans”, conta.
Dionéia se assustou com a situação, mas o aprendizado se transformou em motivação. “Deixei os alunos prontos para a apresentação, saí e chorei. Atravessei três estados com essas crianças dentro de uma van. Pensei ‘meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?’. Um aluno me viu e me consolou. Disse: 'Dionéia, nosso prêmio é estar aqui. Sabemos que não vamos ganhar, mas fizemos o nosso melhor, viemos aqui para ver como é'”, lembra a professora.
Os alunos passaram a semana apresentando trabalhos que construíram de maneira coletiva, foram avaliados por profissionais renomados e, segundo ela, todos que passavam pelo estande dos alunos toledanos ficavam surpresos por se tratar de uma escola pública. “Eram raras naquela feira. Tinha instituto federal, colégio particular, colégio militar, mas escola estadual pública, não. Acho que isso fez com que os alunos se enchessem de motivação”, completa.
No dia da premiação, Dionéia imaginava que os alunos se decepcionariam caso não fossem reconhecidos. Mas eles, segundo ela, estavam emocionalmente mais preparados. "Eles decidiram ficar até o final e fizeram a escolha certa, pois estavam entre os premiados. Levaram para casa três das dez bolsas de iniciação científica disponibilizadas na feira. Choramos muito. Foi uma conquista que deu razão a tudo o que estávamos fazendo”, conta.
Desde então, os alunos intensificaram os trabalhos de pesquisa e passaram a enviar trabalhos para todos os cantos. Participaram de cerca de 150 eventos online em países como Bélgica, Panamá, Argentina, México, Paraguai, Estados Unidos e África do Sul. Em 2022, o Clube de Ciências do colégio teve cinco projetos finalistas na Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), um programa de talentos realizado anualmente na Universidade de São Paulo (USP). Dionéia Schauren também ficou entre os dez finalistas do Prêmio Professor Destaque da Febrace.
As medalhas se avolumaram. Entre os outros destaques estão premiações em feiras e eventos como a Regeneron ISEF 2021, maior feira internacional de Ciências e Engenharia dos EUA; o Programa Jovens Embaixadores 2021 (da Embaixada dos EUA); o London International Youth Science Forum (LIYSF) 2021; o Prêmio Respostas para o Amanhã 2021 (Solve for Tomorrow, da Samsung), entre outros.
A professora conta que os alunos sempre recebem bolsas como reconhecimento pelo trabalho que desenvolvem, incentivando-os a irem atrás de novas ideias. “Temos vários alunos que são bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No fim do ano, inclusive, fechamos dezesseis bolsas”, destaca.
PROJETOS EM ANDAMENTO – Hoje são cerca de quinze projetos em andamento. O colégio é finalista da Febrace novamente com dois trabalhos e se destaca como um dos poucos estaduais selecionados em meio a uma série de instituições de ensino federais e privadas.
O primeiro projeto selecionado é um biofilme comestível para conservar vegetais in natura, desenvolvido pela aluna Gabrielli Monique Campos. O segundo é um produto para controle de fungos na produção de tomates, feito pelo estudante Alisson Rodrigo Costa.
Gabrielli está no terceiro ano do ensino médio, mas entrou no clube quando estava no sexto ano do ensino fundamental. Hoje, aos 17, é responsável pela produção do biofilme que fez uma maçã durar mais de cem dias. “Ela aposta muito nesse projeto. No final do ciclo, ela cortou a maçã e ainda comeu”, conta Dionéia.
A aluna quer evitar que os alimentos da escola sejam descartados. “Os alimentos amadurecem por causa de um hormônio vegetal e precisava impedir esse processo. Descobri que o biofilme evita a entrada e saída desse gás e conserva os alimentos por um período mais longo”, afirma.
A película é desenvolvida à base de fécula de mandioca, amido de milho e água. Gabrielli explica que uma banana, por exemplo, que em um período normal duraria de 7 a 9 dias, com a película passou a durar em média 54 dias. Em outro teste, desta vez com o uso de microalgas, um quiabo, que dura em média 13 dias, durou 91 dias.
“Eles só escolhem os melhores projetos avaliados na feira e o Brasil inteiro está participando. Quando falam que de 500 vão escolher 200 participantes, eu não imaginava estar entre eles”, comemora Gabrieli.
Ela diz que, após tanto tempo no clube, acha que está no caminho certo para se tornar uma cientista com formação superior. “Quando você faz um trabalho científico, você está buscando uma solução para um problema na sociedade. Você cria hipóteses, métodos para resolvê-lo, tem os resultados e chega a uma conclusão para ver se aquilo funcionou ou não. Isso é fazer ciência, é ser cientista”, afirma. A aluna quer cursar Biologia na graduação.
Já Alisson, de 17 anos, está no terceiro ano do ensino médio e participa do clube desde 2019, quando estava no oitavo ano do fundamental. Ele é finalista com um fungicida alternativo aos químicos utilizados na produção de frutas e legumes. O produto poderia ser usado inclusive no pós-colheita, nas prateleiras do supermercado.
“O Alisson era um aluno que não gostava de estudar, hoje é referência dentro da sala. Nós o estimulamos a correr atrás e hoje ele vai com as próprias pernas. Deu certo, é mais um que não desistiu da escola”, comemora Dionéia. O sonho do estudante é fazer Agronomia.
JOVENS INFLUENTES – O trabalho desenvolvido pelos alunos do ensino médio tem influenciado os novatos do colégio, do ensino fundamental, num ciclo perene que garante a Toledo esse status de referência no setor.
Uma das mais novas a participar do Clube de Ciências é Natalia Cristina Rodrigues, que está no sexto ano. Aos 10 anos, ela já desenvolve um produto com extratos vegetais para que produtores usem menos agroquímicos em suas plantações. “Meu pai plantava morango. Quando ia colher, tinha uns pelinhos e não sabia o porquê. Ele achou minha ideia legal porque agora os morangos não ficam mais com fungos”, afirma.
Outro iniciante é Pedro Guilherme dos Reis. Aos 11 anos, ele está no sétimo ano e o que mais gosta do clube é de aprender coisas a que só teria acesso no futuro. “É muito legal. Muitas coisas só aprenderíamos lá no primeiro ano, segundo ano do ensino médio, às vezes até na faculdade, mas acabamos aprendendo aqui antes de todo mundo. Algumas pessoas na universidade não sabem o que a gente sabe aqui no sexto, sétimo ou oitavo ano”, completa.
Pedro, que um dia quer ser engenheiro, está desenvolvendo um plástico biodegradável à base de microalgas, como um substituto aos convencionais, que levam em torno de 400 anos para se decompor. “Eles prejudicam muito o meio ambiente. Este plástico biodegradável é feito de materiais renováveis, então sai mais barato. Você pode reaproveitá-lo e ele ainda pode ir para o meio ambiente, porque se decompõe em torno de um mês. Se o animal comer, o estômago dele vai conseguir digerir sem nenhum desconforto”, explica.
“Uma das coisas mais interessantes do Clube de Ciências é que eles têm um conhecimento avançado para idade. Nós ficamos impressionados. A apresentação dos trabalhos tem que se equiparar a uma de mestrado. Os avaliadores vão estimulando o aluno, perguntando, sugerindo alterações. E eles estudam para responder todos os questionamentos. Isso também faz com que cheguem mais preparados na graduação”, afirma Dionéia.
TRANSFORMAÇÃO – A professora que é a mãe desse projeto é filha de um pedreiro e uma costureira. Morou no sítio até os 13 anos e queria fazer Medicina Veterinária em Palotina, mas o pai não tinha condições de mantê-la em outra cidade. "Acabei fazendo Ciências Biológicas porque eu podia dar aula à noite e, de dia, faria Medicina Veterinária, mas me apaixonei pela Biologia e fiquei nesse universo”, conta.
Ela terminou a graduação, fez um mestrado e está com outro em andamento, além de ter especializações na área. Tudo foi conquistado com muito esforço.
“Dei o meu melhor para fazer a diferença na vida dessa molecada antes mesmo da graduação”, afirma. A maioria dos alunos encontrou no Clube de Ciências uma chance de mudar de vida. “Eles buscam fazer a diferença na realidade deles. Para muitos, é a única oportunidade de entrar numa universidade. Para você ganhar bolsa, o seu currículo lattes tem que estar bom”, completa.
“Tem aluno de oitavo ano que tem currículo melhor que muito professor. Eles correm atrás porque sabem que a chance de mudança na vida deles é aqui. Os mais velhos que seguiram esses passos estão todos na universidade”, comenta. “A pesquisa de base que eles fazem é tão importante quanto a pesquisa final. SO que eles fazem é trabalho de pesquisadores. São jovens pesquisadores paranaenses de destaque nacional e internacional.”