Distrito Federal
25.05.2021Professor brasiliense é um dos 50 melhores do mundo com projeto que oferece rap na socioeducação
Francisco Celso é um dos 50 melhores professores do mundo, de acordo com o Teacher Prize 2020. Foto divulgação
A cultura transforma. A educação traz oportunidades. A junção dessas fontes de conhecimento é tão poderosa que pode mudar radicalmente a vida de jovens infratores. É o que mostra o professor Francisco Celso, que é um dos 50 melhores professores do mundo, de acordo com o Teacher Prize 2020.
Com o projeto RAP: Ressocialização, Autonomia e Protagonismo, que criou, o professor usa linguagens artísticas como fonte de propostas educacionais no Núcleo de Ensino da Unidade de Internação de Santa Maria.
Francisco fala sobre realidade e poesia. Explica a origem do rap como a união entre ritmos e versos que narram contextos sociais ricos.
“Onde estiver, seja lá como for
Tenha fé, porque até no lixão nasce flor”
Ao cantar trecho da música Vida Loka, dos Racionais MC’s, o professor explica a prática do rap no sistema socioeducativo.
Se até no lixão nasce flor, que espécie há de florescer dentro do sistema socioeducativo? Com o RAP, os jovens estudantes privados de liberdade costuram as palavras em versos, e suas rimas retrata realidades às vezes amargas, às vezes esperançosas.
“Lá, o cenário é mais ou menos esse. Um ambiente de muito sofrimento e de muito silenciamento dos corpos e das vozes. É um ambiente que tem muitos comportamentos autodestrutivos, mas que mesmo nesse contexto de muito sofrimento, ainda existe muito potencial, muitas flores brotando”.
Para essa oportunidade brotar, Francisco defende que a relação entre estudante e professor precisa ser democrática.
“A verdadeira disciplina é o projeto comum, construído com eles, para eles e executado por eles, sempre estimulando o protagonismo e autonomia dos estudantes”, explica.
Aqui, o rap é inspiração, manifestação artística e forma de expressão. Foto divulgação
Poesia que transforma
O professor cita a frase original do poeta Pablo Neruda, depois modificada por Che Guevara: “Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera inteira”. Com a referência, ele defende a ideia de que a criatividade, por meio da poesia do rap, pode ser a chave para uma vida de liberdade.
“Precisamos mudar um pouco o imaginário social que enxerga os socieducandos como meninos-problema e meninas-problema. A verdade é que são meninos e meninas com muitos problemas. Enxergam eles como sendo violentos, mas a realidade é que são pessoas que sofreram várias formas de violência desde os primeiros anos de vida e que de repente reproduzem violência, porque foi a pedagogia que foi ensinada para eles”, explica.
Segundo Francisco, a partir do momento em que são apontados novos caminhos, os jovens mostram o potencial e o talento que tem.
Porém, para conquistar esse processo simultâneo de desconstrução e construção, é preciso mergulhar em referências cotidianas e por meio delas ampliar uma visão de mundo.
“Foi quando fui para o sistema socioeducativo, em 2015, que comecei a trabalhar especificamente com o rap. Percebi que os socioeducandos não se enxergavam nas histórias contadas nos livros didáticos, mas eles se viam nas histórias narradas nas letras de rap”, conta o professor.
Formado em história desde 2003 e professor da Secretaria de Educação desde 2008, ele explica que não escolheu o rap como ferramenta pedagógica, foram os próprios estudantes.
“Talvez eu tenha sido ali a pessoa que teve essa sensibilidade, como diz Paulo Freire, de perceber que eles não são copos vazios. Eles carregam letramentos que muitas vezes nós professores não temos. Eles trazem essa potência. O que eu faço é dar oportunidade para que essa potência seja amplificada”, afirma.
Com essa metodologia, ele enfatiza que a imposição não é o caminho. Conta que não adianta querer falar sobre Grécia ou Itália sem valorizar a referência pessoal, a casa, de cada um. Não adianta falar de história da arte europeia, sem mostrar as cores do grafite.
A realidade pode se apresentar com muito sofrimento, mas é a partir dela que o professor chama uma transformação: “Espero que em um futuro próximo as letras deles e delas não cantem só dor e só sofrimento, mas que cante mais flores também, coisas bonitas e belas. Tudo isso depende de uma mudança de trajetória de vida”.
A cultura transforma. A educação traz oportunidades. Foto divulgação
Trajetória que inspira
“A vontade de ser professor veio de uma inquietação e de uma crítica ao sistema educacional como um todo. Na minha época de estudante eu não fui um estudante exemplar, tive duas reprovações por falta, porque não me sentia acolhido na escola. Eu era extremamente tímido, por vezes fui constrangido por professores e isso me fez perder a vontade de frequentar a escola.”
As lembranças como estudante movem o sentido do trabalho. Francisco conta que prometeu fazer a diferença: “Quero que o ambiente escolar seja acolhedor para todos. Desde que comecei a atuar no magistério, fiz a promessa de que jamais ia constranger um aluno meu e até a presente data venho conseguindo cumprir essa promessa”.
Contudo, não são apenas as lembranças difíceis que desenham essa trajetória. Aos 12 anos o rap entrou na vida do professor e fez a diferença.
“Escutava a rádio Manchete, um programa de black music chamado Mix Mania. Ali comecei a pegar gosto. Fiz um curso de DJ em uma loja de disco no Venâncio 2000, ministrado na época pelo DJ Chocolate e comecei atuar como DJ tocando no Guará.”
Na época, o rap era um dos pedidos recorrentes durante os shows e, ainda como estudante, Francisco viu a interação com o rap sair da descontração de festas e chegar na sala de aula:
“Pessoas inocentes que não têm nada a ver
Estão perdendo hoje o seu direito de viver
Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela
Só vejo paisagem muito linda e muito bela”
Quando estava no 9º ano, na época 8ª série, ele teve uma aula de geografia em que a professora falava sobre desigualdade social quando perguntou se alguém conhecia o rap da felicidade.
“Na verdade, nem é um rap. É um funk, mas na época os funks se intitulavam rap. Ali, todo mundo conhecia e um dos alunos cantou, quando todos começaram a cantar junto. A música trata da desigualdade social e partir dali, em uma aula que a turma estava dispersa, começou a surgir um debate sobre o tema. Naquele momento entendi a música como uma ferramenta pedagógica potente”, lembra.
Desde o início da pandemia o projeto RAP segue com produção de conteúdo audiovisual. Foto divulgação
Hoje, o projeto RAP é premiado. Francisco é um dos 50 melhores professores do mundo e dedica toda sua trajetória aos socieducandos. Nesse momento de pandemia e aulas remotas, ele publicou vídeos, lançou livros, CDs, além do curta metragem Sobrevivendo no Inferno, premiado na Rússia.
Com recursos do projeto RAP conseguiu colocar televisores no Núcleo de Ensino da Unidade de Internação de Santa Maria, onde envia vídeo-aulas para agentes sociais passarem para os estudantes, além dos materiais impressos.
Por Íris Cruz | Ascom/SEEDF